“Nós quatro,

Eu com ela,

Eu sem ela,

Nós por cima,

Nós por baixo”

(Brincadeira tradicional)

Em toda a história da Recreio, a perspectiva da interação esteve presente no cotidiano da escola, e podemos afirmar que é fundamental e constituinte do trabalho pedagógico.

Ao se relacionarem, as crianças se dão conta de que não existe um saber único, tampouco uma única forma de viver e entender as coisas. Descobrem que cada um tem o seu jeito, que pontos de vista podem ser diferentes, que verdades não são únicas nem fixas e que as pessoaspodem interpretar os mesmos fatos de formas variadas.

De acordo com Myriam Nemirovsky, “(…) a interação contribui para que a criança possa tomar consciência do ponto de vista dos demais, para aprender a negociar e, se necessário, a renunciar a suas próprias posições, ou a postergar a satisfação de seus interesses em benefício de um objetivo coletivo (…), assim a criança estabelece uma série de laços inter-relacionados que conduzem a uma verdadeira construção conjunta: explora, propõe, retifica, integra aquilo que diz o colega, regula suas ações, apresenta argumentos a suas propostas para que o outro as entenda etc., tudo isso com o objetivo de alcançar uma meta comum”.

Nesse sentido, qualificam-se os momentos de interação (inter-idades e intra-idades) como fundamentais para a constituição do sujeito. Terezinha Rios, por exemplo, diz que, baseada nos variados papéis que desempenham socialmente, a identidade conjuga características únicas dos indivíduos às circunstâncias em que se encontram. Segundo a perspectiva sócio-histórica, é através da relação do sujeito com o mundo que o indivíduo constrói sua identidade. a qual está sempre em movimento. Ao falar sobre a constituição social do homem, João Carlos Martins afirma: “… como seres humanos e, portanto, ontologicamente sociais, passamos a construir a nossa história só e exclusivamente com a participação dos outros e da apropriação do patrimônio cultural da humanidade”.

Assim, considerando a importância das trocas e das relações para a formação de um indivíduo íntegro, atento a si e a seu entorno, procuramos viabilizar, no cotidiano escolar, diferentes situações e práticas que envolvem interações. Para além das que já vivem no grupo de referência, as crianças são desafiadas a viver momentos de encontros com outros grupos, que podem ocorrer tanto em situações de exploração e brincadeira nos espaços externos da escola ou de alimentação (almoço e lanche), quanto em atividades especialmente planejadas e mediadas pelos educadores dos grupos envolvidos.

As situações que envolvem interação (inter e intra-idades) fazem parte da dinâmica de trabalho dos grupos e são planejadas de modo que as crianças ajam e pensem em conjunto, produzam, pesquisem, brinquem e trabalhem juntas, além de cuidarem umas das outras, o que contribui para o aprendizado e crescimento de todas.Acreditamos que desta forma as relações se dão entre iguais, mas entre iguais heterogêneos que, sob condições adequadas, criadas e intermediadas pelos adultos, propiciam oportunidades de: identificação, diferenciação, partilha, construção da autonomia e vivência de situações de confronto, desestabilização e desafio. Elementos essenciais aos avanços nos campos social, intelectual e moral.

A interação entre as crianças propicia que as relações se desenvolvam, e que as crianças se descubram, percebendo afinidades, possibilidades e recursos, usando-os nas mais variadas situações. Terezinha Rios afirma que “a identidade é algo em permanente construção e se constrói na articulação com a alteridade, implica o reconhecimento recíproco”. E talvez essa seja uma das maiores riquezas desse projeto, uma vez que nos momentos de interação as crianças aprendem, e muito, umas com as outras. Nossa experiência mostra que, independente da idade, ao entrarem em contato com brincadeiras, explorações, recursos e repertórios umas das outras, as crianças descobrem ou redescobrem formas de explorar, de se relacionar, de pesquisar e de brincar.

É parte primordial deste trabalho favorecer o desenvolvimento nas crianças de uma série de posturas e atitudes, tais como:

curiosidade, participação ativa e interesse em conhecer, aprender e partilhar (pesquisa, exploração e experimentação);interesse e sensibilização pelo outro;capacidade de relacionarem-se de forma respeitosa, afetuosa, colaborativa e solidária;percepção e aceitação de diferenças e semelhanças;escolha e autonomia frente a tarefas e desafios;atenção a direitos e deveres.

Entendemos que os momentos de interação inter-idades são especialmente ricos nesse sentido. Assim, na história da Recreio, a partir de 2002, deu-se ênfase ainda maior a estes, intensificando os que já existiam e diversificando cada vez mais potenciais situações interativas: novas modalidades e diferentes tipos de agrupamento foram intencionalmente planejados e passaram a integrar a rotina dos grupos.

O projeto interação e a reflexão sobre este, somadas a trocas e estudos de teóricos da infância, reforçaram a abordagem defendida pelo Recreio e seu Projeto Político Pedagógico avançou nesta direção. A ponto de, quando foi necessário a escola mudar de endereço em julho de 2013, planejarmos e organizarmos a distribuição de salas e pátios, de forma a garantir ainda mais as relações inter-idades. Atualmente, os espaços frequentados pelos grupos são mais integrados: próximos uns dos outros e também com aberturas e transparências que favorecem que as crianças e adultos se vejam e se relacionem, mesmo não estando no mesmo local. A proposta é que as criançasexperimentem as interações mesmo quando estas não estão programadas na rotina.

As crianças não conseguiriam viver o processo de interação em sua essência, se este não acontecesse simultaneamente com os educadores e demais funcionários. O Projeto Interação é vivido por todas as crianças, educadores e funcionários do Recreio, todas as crianças e adultos são da escola, atuando, interferindo e colaborando para a construção de saberes e formação de cidadãos.

No decorrer de sua história, o trabalho e o papel dos educadores também foi se modificando. O desenvolvimento de projetos como Interação e os pilares do Projeto Político Pedagógico do Recreio – garantia da infância, importância e valorização da brincadeira, respeito à diversidade, escola como um lugar de cuidados e educação –são base para definirmos o papel e as características do educador do Recreio.

Acreditamos no educador do Recreio como aquele que olha, tece, acolhe, acompanha e não centraliza; que promove o diálogo e que, através de seu olhar atento, é capaz de desvelar as experiências e aprendizagens das crianças. Nilson José Machado faz uma definição do educador que acreditamos combinar muito com nossa visão: “(…) o professor é mediador e tecelão, é cartógrafo e fabuloso. Ou, em termos menos enigmáticos: o professor é um mediador de relações, tecelão de significações, cartógrafo de relevâncias, e sobretudo, um contador de histórias, não quaisquer histórias, mas as de natureza fabulosa”.